Conhecendo a ciência e os homens que a constroem

Os reis do Sol – A história do começo da astronomia moderna e da inusitada tragédia de Richard Carrington, de Stuart Clark

Maria Eduarda Frabasile – Grupo Alfa Crucis

16/06/2019

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Quando o assunto é o desenvolvimento da astronomia como ciência através do tempo, logo pensamos no estudo das estrelas e planetas, suas posições e características físicas. Mas contar a história da astronomia é também contar a história do conhecimento sobre o Sol, a nossa estrela mais próxima e da qual depende inteiramente a vida na Terra.

É o desenvolvimento dessa parte da astronomia que podemos acompanhar no livro Os reis do Sol, de Stuart Clark. O autor, ao nos mostrar como o conhecimento sobre o Sol foi se aprimorando, nos narra também a história dos atores envolvidos. E faz isso com maestria. E suspense, que começa já pela escolha do subtítulo: “A história do começo da astronomia moderna e da inusitada tragédia de Richard Carrington”. O que será que aconteceu com esse pobre astrônomo? Isso só vamos descobrir passados dois terços do livro, quando esse mistério já de longe cedeu lugar a outro bem mais interessante: a relação entre as manchas e tempestades solares com o magnetismo da Terra.

Clark começa por Galileu, que foi o primeiro a observar o Sol ao telescópio e a descrever suas manchas, por volta do ano 1610. Outro passo na observação e descrição do Sol foi dado no final do século XVIII por ninguém menos que William Herschel, o brilhante astrônomo que descobriu o planeta Urano. Com o uso de técnicas inventivas para proteção dos aparelhos da forte luz solar, ele pôde observar que a superfície do astro não se apresentava de maneira homogênea, mas com a aparência de uma casca de laranja. Quanto às manchas solares, ele as percebeu como aberturas escavadas abaixo das camadas luminosas.

O século XIX assistiu a um gigante esforço para “medir o mundo”, registrar essas medidas e sistematizá-las. Foi nessa época que Heinrich Schwabe, um astrônomo amador, empreendeu um trabalho diligente e dedicado: efetuou aproximadamente 9 mil observações de 4.700 manchas durante mais de trinta anos, registrando cuidadosamente os dados coletados. Com a utilização desses registros, ele concluiu que a quantidade de manchas solares aumentava e diminuía ao longo de um ciclo aproximado de uma década. Um grande feito, já que ninguém tinha conseguido estabelecer qualquer padrão para o fenômeno.

Em paralelo às observações solares, também avançaram os estudos a respeito do magnetismo da Terra, que indicavam uma relação entre a intensidade do campo magnético e a presença do Sol, já que as agulhas dos medidores se comportavam de forma diferente durante o dia e durante a noite.

O naturalista Alexander von Humboldt foi o primeiro homem a observar que os ponteiros magnéticos ficavam descontrolados quando uma aurora boreal iluminava o céu. Foi ele que cunhou o termo tempestade magnética para descrever esse fenômeno. O estudo do magnetismo terrestre ganhou relevância, a ponto de se instalarem estações de medição magnética ao redor de todo o globo – empreitada que Stuart Clark chamou de cruzada magnética.

Nos anos seguintes, dados obtidos nessas estações foram compilados e organizados.  Foi então que a relação entre manchas solares e tempestades magnéticas começou a ficar clara. A comparação entre as observações de manchas solares efetuadas por Schwabe e os dados das estações magnéticas demonstrou que quanto mais numerosas as manchas solares maiores eram as perturbações nas agulhas magnéticas na Terra e, consequentemente, maiores as chances da ocorrência de tempestades magnéticas. Uma relação sem dúvida surpreendente.

Vamos agora nos ocupar do jovem Richard Carrington, que afinal é, supostamente, o protagonista desta história. Jovem de origem abastada, ele se interessou pelo estudo da astronomia, o que o fez desistir da carreira religiosa. Seu primeiro posto foi no observatório de Durham, de onde observava o céu diurno e noturno. Ao observar o eclipse total do Sol de 1851 na Suécia, Carrington ficou intrigado com o que viu: quatro línguas de uma chama rosada elevando-se da superfície encoberta do Sol. Ele notou que elas haviam aparecido alinhadas com as manchas solares – qual seria a conexão entre as manchas e essas erupções observadas?

Em 1853, trabalhando em seu observatório privado, Carrington começou a fazer um minucioso acompanhamento do Sol e das manchas transitórias que o cobriam. Já era um astrônomo respeitado, aos 33 anos de idade, mas esperava ainda fazer alguma descoberta relevante, que alavancasse sua carreira. E, em 1o de setembro de 1859, esse momento chegou. O dia amanheceu claro e ele estava observando um grupo enorme de manchas. De repente, avistou sobre elas duas bolhas de luz branca, brilhantes como um relâmpago, mas redondas e persistentes. Tal fenômeno durou cinco minutos.

Tendo noção da grandiosidade do evento, ele resolveu ir ao observatório de Kew, em que estava em curso um projeto experimental para fotografar o Sol. Chegando lá, teve uma má notícia: não havia fotografia daquele dia e ninguém observara o fenômeno. Porém, os instrumentos magnéticos de Kew mostraram que, no momento exato do evento em questão, ocorreu uma abrupta perturbação no campo magnético terrestre, com a duração de cerca de três minutos. Isso indicava que, de alguma maneira, a erupção observada por Carrington tinha afetado o campo magnético da Terra. As surpresas, porém, não paravam por aí. Dezoito horas depois da perturbação original, as agulhas se agitaram freneticamente de novo, mostrando uma nova perturbação, desta vez ainda mais forte e duradoura.

E foi no momento dessa segunda perturbação que a atmosfera terrestre explodiu em auroras. Além de intensas, elas apareceram em latitudes muito incomuns. Explico melhor: as auroras surgem normalmente em latitudes altas, sempre próximas aos polos, sendo conhecidas como auroras polares (boreais, quando acontecem ao norte, ou austrais, ao sul). Neste dia, houve relatos de auroras em Santiago do Chile (-33o – latitude sul) e El Salvador (13o – latitude norte). Esses são apenas exemplos de aparições de surpreendente intensidade e beleza por todo o globo. Além disso, esse intrigante fenômeno também desativou o sistema telegráfico, silenciando as comunicações através do mundo.

Os diversos relatos das auroras e das panes em equipamentos de telégrafo deixaram claro que a Terra havia sido envolta em algo inexplicável e que teve um efeito global sobre o planeta. E no centro estava a erupção observada por Carrington: tudo indicava que a tempestade magnética tinha sido causada por um tipo de corrente elétrica expelida pelo Sol. Mas por que os maiores efeitos tinham sido sentidos apenas 18 horas após a observação do fenômeno?

Nessa incrível jornada pelo entendimento dos fenômenos que unem manchas e tempestades solares, Stuart Clark nos apresenta outro nome: Edward Walter Maunder. Fascinado por observar o Sol desde menino, quando conseguiu ver nódoas escuras na superfície do sol poente, ele começou a trabalhar como assistente no observatório de Greenwich em 1872. Durante anos fotografou a superfície solar, o que produziu um enorme volume de dados para serem analisados. Além disso, fazia imagens espectroscópicas das manchas. Numa de suas fotos, pôde ver espirais brilhantes de gás hidrogênio se elevando, como expelidas sob grande pressão.

Maunder estava convencido de que as tempestades magnéticas eram causadas pelas erupções produzidas nas manchas, que ejetavam sua energia apenas ao longo de certas trajetórias. Isso era corroborado por fotografias tiradas por sua esposa e assistente Annie Maunder durante eclipses totais do Sol. Tais fotografias mostravam a coroa com feixes retos de luz, cujas dimensões eram muitas vezes maiores que o diâmetro do Sol.

Carrington, Maunder e muitos outros que ajudaram a montar esse enorme quebra-cabeça da relação entre o magnetismo do Sol e da Terra foram chamados de reis do Sol pelo autor. Porém, segundo ele, faltavam-lhes peças fundamentais: o conhecimento do átomo e a teoria do quantum.

Hoje sabemos que a temperatura do Sol arranca os elétrons de seus átomos, formando uma nuvem de eletricidade e magnetismo variáveis, que é continuamente impelida em todas as direções. Isso leva à expulsão de matéria da coroa – fenômeno que chamamos de vento solar. A colisão dessas partículas eletricamente carregadas com o campo magnético da Terra é a causa das perturbações medidas nas agulhas das bússolas diariamente. Essas perturbações são mais brandas nos períodos de menor atividade solar (associados a menor número de manchas) e muito mais intensas e variáveis nos períodos de maior atividade.

As erupções, por sua vez, são enormes explosões que provocam a expulsão de partículas da coroa, o que é conhecido como ejeção de massa coronal. Elas são causadas por fenômenos magnéticos que ocorrem na superfície do Sol. Arcos magnéticos que irrompem da superfície esfriam o gás que está ao seu redor, tornando essas regiões mais escuras, o que dá origem às manchas. Quando esses arcos se entrelaçam é que ocorrem as erupções solares.

Nas erupções muito intensas, uma parte da radiação emitida pode estar na faixa do visível do espectro eletromagnético. Isso explica os pontos brilhantes de luz branca que Carrington avistou acima das manchas na erupção de 1o de setembro de 1859. No entanto, a maior parte da radiação é lançada na forma de raios X, que eletrificam as partículas da atmosfera terrestre. Essa torrente de raios X causou as oscilações magnéticas detectadas nas agulhas do observatório de Kew no mesmo instante que o astrônomo tinha observado os estranhos pontos brilhantes.

As partículas eletricamente carregadas que foram ejetadas em quantidades colossais na erupção, por outro lado, não viajam na velocidade da luz. Por isso, seus efeitos só foram percebidos 18 horas depois, na forma das inusitadas auroras, tempestades magnéticas e pane do sistema telegráfico.

Nos capítulos finais de seu livro, Clark explica que, graças ao registro de medições efetuadas na Índia em uma das estações da cruzada magnética, resgatado quase por acaso, Bruce Tsurutani, pesquisador da NASA, pôde calcular que a energia liberada durante o evento Carrington foi muitas vezes superior a qualquer outra erupção que tenhamos medido. Outros métodos de pesquisa corroboram essa conclusão. Fica, então, a grande questão: o que aconteceria nos tempos atuais se fôssemos atingidos por uma tempestade magnética de tamanha magnitude? Somos hoje muito mais dependentes de energia e comunicação, o que tornaria as consequências muito mais graves, com a possível inutilização de satélites artificiais e perdas humanas nas estações espaciais. Daí a crucial importância de monitorarmos o Sol com satélites como o SOHO e de entendermos cada vez melhor como funcionam os ciclos de magnetismo solares, para proteger a vida na Terra.

Além disso, cada vez há mais dados que apontam para a possibilidade de os ciclos solares terem influência sobre o clima da Terra. Estamos frente a uma situação parecida com a dos astrônomos do século XIX.  Nas palavras de Stuart Clark: “Se a história dos reis do Sol tem algo a nos ensinar, certamente é que a coincidência muitas vezes é sinalizadora de uma realidade oculta”. Esperemos o desenrolar desse novo enigma.

E quanto à “inusitada tragédia” de Richard Carrington? Bom, para saber essa parte da história você vai ter que ler o livro. Recomendo.

 

Os reis do Sol – A história do começo da astronomia moderna e da inusitada tragédia de Richard Carrington, de Stuart Clark. Tradução de Laura Rumchinsky. 1a ed. Rio de Janeiro: Record, 2016, 250 págs.

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