A constelação de Harvard

The Glass Universe – How the Ladies of the Harvard Observatory Took the Measure of the Stars, de Dava Sobel

Ção Rodrigues – Grupo Alfa Crucis

10/03/2019

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Ao ver as impressionantes imagens de telescópios instalados em terra e no céu e constatar a riqueza de informações sobre objetos distantes que sempre recebemos, fica difícil imaginar que até a década de 1920 a humanidade ainda não sabia sequer se existiria algo além de nossa própria galáxia. O grande problema é que ainda não havia um método de aferição de distâncias que permitisse dizer se as tênues manchas brancas, várias delas espiraladas, que eram detectadas aos telescópios estariam próximas – e seriam assim do tamanho aproximado de estrelas – ou muito distantes, sendo nesse caso enormes, com dimensões da ordem de nossa galáxia.

A chave para resolver a questão foi dada por uma simples funcionária do Observatório de Harvard, encarregada de analisar espectros estelares (imagens que decompõem a luz das estrelas em seus vários comprimentos de onda). Henrietta Swann Leavitt percebeu que havia uma relação entre o brilho médio e a duração do ciclo de oscilação da luz de certas estrelas variáveis (as cefeidas) que permitia calcular sua distância onde quer que estivessem. Isso possibilitou determinar por fim que várias daquelas manchas eram na verdade outras galáxias e não estrelas em formação, como afirmavam alguns.  Mais ainda, essa descoberta levaria à confirmação de que o Universo está em expansão.

A história desse feito, que abriu uma nova era na astronomia, assim como a de outras incríveis realizações de uma equipe de mulheres que trabalharam em Harvard em fins do século XIX e início do século XX, é contada com riqueza de detalhes no livro The Glass Universe – How the Ladies of the Harvard Observatory Took the Measure of the Stars, de Dava Sobel, autora de várias outras importantes obras de divulgação científica, entre elas A filha de Galileu, Os planetas e Um céu mais perfeito (sobre Copérnico).

A posição das mulheres, no início do século XX nos Estados Unidos, era bastante desfavorecida. Elas não tinham direito ao voto e, embora pudessem frequentar escolas de ensino superior femininas (como Vassar, Wellesley ou Radcliffe College, este último ligado a Harvard), seu diploma dificilmente as habilitava a assumir posições profissionais ou acadêmicas em suas áreas. A ideia era que, apesar de poderem aprender o que de mais avançado se produzia na época, seriam incapazes de criar elas mesmas alguma coisa de inédito, que mudasse os rumos da ciência. Em outras palavras, nunca seriam verdadeiras cientistas ou pesquisadoras.

Discordando dessa opinião geral, William Pickering, diretor do Observatório de Harvard, onde já havia algumas funcionárias antes que ele assumisse, continuou a contratar cada vez mais mulheres. Várias delas tinham formação em astronomia, mas muitas eram apenas pessoas em que ele detectou grande capacidade intelectual, como Williamina Fleming. Antes uma simples empregada na casa de Pickering, Williamina (ou Mina, como também se assinaria) se destacaria, chefiando a equipe de mulheres que trabalhavam no exame de espectros estelares e participando da elaboração de um método definitivo de classificação de estrelas. Entre outras realizações, ela foi responsável pela descoberta da primeira nova detectada por espectroscopia e também de muitas estrelas variáveis, reveladas não só pela mudança de brilho em diferentes noites como pela alteração na dimensão de seu espectro e também a partir de modificações em linhas espectrais, uma técnica que Mina Fleming cedo vislumbrou.

As mulheres contratadas por Pickering demonstravam grande habilidade e minúcia na análise dos espectros em placas de vidro (material de que eram feitas as imagens fotográficas na época, daí o nome do livro, que corresponde em português a O universo de vidro). Além disso, elas recebiam um salário bastante inferior ao dos homens no mesmo posto. Isso certamente pesou na decisão de Pickering de contratar mulheres, já que o trabalho de classificação dos espectros tinha recursos financeiros limitados. A iniciativa era patrocinada por Anna Palmer Draper, viúva de Henry Draper, médico e astrônomo amador que legara uma grande quantidade de espectros que havia obtido – um trabalho pioneiro na época – e cuja memória ela queria perpetuar com esse projeto. Essas mulheres acabaram sendo conhecidas pela palavra inglesa “computers”, algo que tem sido traduzido como “computadoras”, devido ao cargo que as primeiras delas ocuparam, como responsáveis por cálculos (ou “cômputos”) matemáticos.

Com Pickering o projeto cresceu, novas séries de espectros, cada vez mais precisos, foram obtidas, inclusive com a criação de observatórios no hemisfério sul, mas a grande contribuição para a história da astronomia foi dada por sua equipe de mulheres – jocosamente chamadas muitas vezes de “harém de Pickering”, com um desdém que não faz justiça nem a elas nem ao diretor do observatório, que sempre as valorizou e estimulou, levando-as a escrever trabalhos e a candidatar-se a prêmios e posições, mesmo contra a opinião de seus pares.

Para se ter uma ideia, quando em 1911 Mina Fleming faleceu, vítima de pneumonia, Pickering propôs ao presidente de Harvard substituí-la no cargo de curadora oficial de fotografias astronômicas por Annie Jump Cannon. Em sua mensagem, ele explicou que Annie Cannon já vinha desempenhando essa função desde que Mina Fleming adoecera e era “a principal autoridade na classificação de espectros estelares e talvez possivelmente estrelas variáveis”. Ignorando qualquer argumentação, o presidente de Harvard respondeu que sempre sentira que a posição da senhora Fleming era “de certo modo anômala e que seria melhor não tornar prática regular tratar seus sucessores da mesma maneira”. Apesar de manifestações de espanto dentro da comunidade astronômica, já que, segundo foi declarado, ela era “a maior especialista viva nessa linha de trabalho”, Annie Cannon foi mantida em cargo honorário e somente vinte e sete anos depois, em 1938, finalmente assumiria a posição oficial de curadora de fotografias astronômicas.

O livro relata também como foi discutido e adotado pelos astrônomos de todo o mundo, por sua clareza e precisão, o sistema fotográfico de magnitudes de Harvard. Outro grande passo para tornar consistentes os trabalhos realizados por astrônomos de diferentes países foi dado ao estabelecer um modo único de classificação estelar. Novamente, a escolha recaiu sobre a classificação estelar de Harvard, baseada no estudo de espectros.  Essa classificação (a famosa série O, B, A, F, G, K, M – em uso até hoje) recebeu sua forma definitiva de Annie Jump Cannon, a partir dos trabalhos de Henrietta Leavitt e Antonia Maury, todas pesquisadoras de Harvard.

Annie Cannon detectou uma continuidade em todas as linhas dos elementos químicos e moléculas presentes nos espectros estelares que havia passado despercebida na classificação anterior, alfabética, baseada apenas nas linhas de hidrogênio dos espectros. Com isso, foi obrigada a “desordenar” a ordem alfabética anterior, dando no entanto coerência astrofísica à classificação.

Embora na época tenha se imaginado que o ordenamento da classificação de Harvard pudesse refletir um trajeto evolutivo das estrelas, hoje se sabe que isso não acontece, sendo basicamente um indicador da temperatura superficial estelar. Bem mais tarde, em 1943 astrônomos do Observatório de Yerkes acrescentariam outro elemento a essa classificação (de subanãs a supergigantes), esse sim relacionado ao estágio evolutivo das estrelas, mas cuja base também já se encontrava nos estudos de Antonia Maury sobre diferenças de largura em linhas espectrais de estrelas de mesma classe.

Outra das pesquisadoras cujo trabalho é destacado por Dava Sobel é Cecilia Payne-Gaposchkin. Na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, onde estudara, Cecilia havia se familiarizado com o complexo modelo de átomo de Bohr em palestras do próprio Niels Bohr, e decidiu aplicar as novas teorias de estrutura atômica e física quântica à análise dos espectros, uma abordagem totalmente inédita em Harvard.

Incorporando as recentes descobertas de Edward Milne e Ralph Fowler sobre as correlações entre transições atômicas e intensidade de linhas espectrais, Cecilia pôde ir além da determinação de temperaturas superficiais estelares, calculando as abundâncias químicas relativas de vários tipos de estrelas.

Os resultados que obteve foram surpreendentes, refutando a ideia então corrente de que as estrelas tinham composição química semelhante à da Terra. Com base em seus cálculos, Cecilia descobriu que elas eram compostas primordialmente de hidrogênio e hélio (este numa proporção muito menor). Segundo suas conclusões, publicadas na tese de 1925, “o hidrogênio deveria ser um milhão de vezes mais abundante que os metais” (“metais” é a designação dada em astronomia a todos os elementos químicos acima do hélio). A afirmação, hoje tão comum, foi recebida com tamanho espanto que o importante astrônomo Henry Norris Russell, ao revisar a tese, aconselhou-a a atenuá-la, dizendo que tal possibilidade era “claramente impossível”.

Em respeito aos argumentos de Russell, Cecilia acrescentou uma advertência em sua tese ressalvando que a conclusão de que as estrelas eram basicamente formadas por hidrogênio “certamente não era real”. A autora de Glass Universe explica nessa passagem que, num campo tão novo como a físico-química das estrelas, resultados anômalos não eram algo a recear ou ser motivo de vergonha, pois propunham questões a ser pesquisadas e explicadas por outros. O fato, porém, é que Cecilia estava correta e, anos depois, o próprio Russell reconheceu isso em um artigo que publicou sobre a questão. Com essa tese, Cecilia veio a se tornar a primeira pessoa – note-se, não a primeira mulher – a obter o título de PhD em Harvard.

Embora trate com especial detalhe as muitas descobertas das mulheres de Harvard, o livro de Dava Sobel acaba acompanhando vários dos avanços astronômicos da época e se constitui numa leitura muito enriquecedora para todos os que apreciam temas de divulgação científica. É uma pena que por enquanto não haja uma tradução publicada em português. Com suas 324 páginas é uma obra relativamente longa, mas sem dúvida encontraria um grande público interessado.

The Glass Universe – How the Ladies of the Harvard Observatory Took the Measure of the Stars, de Dava Sobel. Nova York: Viking, 2016, 324 págs.

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