Uma pequena história da espectroscopia

Tasso Napoleão  – Grupo Alfa Crucis

Para acessar o pdf do texto clique aqui.


O célebre filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), fundador do positivismo, no ano de 1835, em sua obra Cours de Philosophie Positive (19ème leçon), escreveu, referindo-se aos corpos celestes: “Podemos conceber a possibilidade de determinar as suas formas, suas distâncias, suas grandezas e seus movimentos; no entanto, não saberemos jamais estudar, por quaisquer meios, a sua composição química…”

Comte não poderia imaginar que – apenas dois anos após a sua morte – sua afirmação seria desmentida pela então nascente ciência da espectroscopia. Para localizarmos as raízes históricas dessa ciência, entretanto, teremos antes de recuar quase dois séculos.

Já no ano de 1666, com apenas 24 anos, o genial Sir Isaac Newton (1642-1727), usando um prisma, havia decomposto a luz solar nas suas diversas cores componentes – aquilo a que chamou de “espectro”. Newton trabalhou por mais quatro anos com experimentos ópticos, porém só publicaria os resultados detalhados de seus experimentos mais de trinta anos depois, no seu livro “Opticks”. É intrigante a razão dessa demora. Com base em seus experimentos, Newton havia elaborado uma teoria sobre a natureza da luz (que seria formada por partículas, ou corpúsculos), e apresentou-a à Royal Society em 1672, pouco depois de ingressar na Sociedade. O trabalho recebeu imediatamente pesadas críticas de Robert Hooke. Newton respondeu acidamente, e os dois se envolveram em uma desgastante polêmica que se estenderia por anos e que resultaria em uma inimizade que durou, aparentemente, até o falecimento de Hooke. Não parece ser coincidência o fato de que “Opticks” só seria publicado em 1704, pouco depois da morte de Hooke e da eleição de Newton para a presidência da Royal Society – ambos estes fatos ocorridos em 1703.

A teoria corpuscular de Newton foi refutada também por outro gênio da época, o holandês Christiaan Huygens (1629-1695), que, na sua obra “Traité de la Lumière”, apresentada à Académie des Sciences francesa em 1678 e publicada em 1690, propôs que, ao contrário, a luz deveria ter uma natureza ondulatória. Apesar de não haver entre Huygens e Newton um embate semelhante ao ocorrido com Hooke, os dois grandes cientistas mantiveram as suas posições divergentes, ambas embasadas em sólida proficiência matemática e experimental. Provavelmente devido ao imenso prestígio de Newton (já lastreado também no sucesso da teoria da gravitação universal) o modelo corpuscular prevaleceu por todo o século seguinte. Apenas em 1801 é que Thomas Young realizaria a famosa experiência da fenda dupla, demonstrando o fenômeno da interferência da luz e fazendo reviver a teoria ondulatória, o que foi posteriormente confirmado por Augustin Fresnel. Curiosamente, a situação se inverte então no século XIX: a luz é agora considerada como uma onda e o modelo corpuscular é abandonado…isso ao menos até 1905, ano em que Einstein explica o efeito fotoelétrico, demonstrando que a luz também se comporta como partícula. Surge o conceito de fóton (identificado como “quantum de luz” – ou de radiação eletromagnética em geral) e é finamente estabelecida a complementaridade onda-partícula. De certa forma, portanto, pode-se dizer que tanto Huygens como Newton tinham sua dose de razão…

Podemos especular hoje que, caso tivesse dedicado mais tempo ao estudo da luz (que abandonou poucos anos mais tarde, nunca mais voltando ao assunto) Newton poderia ter descoberto muito mais sobre o espectro, talvez até encontrando as suas aplicações na astronomia. Mas, afinal, além das disputas com Hooke, Sir Isaac já tinha outros interesses e prioridades: a matemática, a mecânica, a teoria da gravitação universal, a alquimia, a teologia…e depois se tornaria presidente da Royal Society e diretor da Casa da Moeda. E assim, a espectroscopia teve de esperar ainda cento e cinquenta anos para se desenvolver.

No ano de 1814, um jovem e talentoso óptico alemão, Josef von Fraunhofer (1787-1826), experimentando diversos tipos de prismas de vidro, notou que o espectro do Sol apresentava um grande número de linhas muito finas – mais de 500 – sobre a faixa do contínuo. Intrigado, Fraunhofer tentou múltiplas composições diferentes de vidros e desenhos de prismas, até concluir finalmente, em 1817, que “as linhas pertencem à natureza da luz solar, e não são causadas por difrações ou aparências”. Fraunhofer era também astrônomo amador, e assim procurou identificar (com sucesso) linhas em Sirius, Castor, Pollux, Capella, Betelgeuse e Procyon; ele notou, entretanto, que a maior parte dessas linhas eram diferentes daquelas do espectro solar, que ele havia medido com cuidado e nomeado de A até K. Apaixonado pelo projeto e construção de instrumentos ópticos, Fraunhofer construiu lentes, prismas, microscópios, telescópios e inventou ainda aquilo que poderia ser chamado de primeiro espectroscópio moderno, formado por um prisma, fenda, lente colimadora e uma luneta; além do primeiro espectroscópio que usava uma rede de difração. Vitimado por uma tuberculose, Fraunhofer morreu cedo, e nunca chegou a compreender qual era a causa das linhas espectrais (até hoje chamadas linhas de Fraunhofer) que ele havia observado. A solução desse enigma estava reservada para um físico teórico e um químico, ambos também alemães: Gustav Kichhoff (1824-1887) e Robert Bunsen (1811-1899), no ano de 1859.

Três anos antes, Bunsen havia inventado um engenhoso bico de gás, hoje conhecido em todos os laboratórios químicos por seu nome (bico de Bunsen), e cuja característica é a mistura do ar com o gás natural na base do queimador, permitindo uma queima mais eficiente e (regulando-se a entrada de ar) a obtenção de uma chama azul na base e incolor no topo. Dessa forma, quando se aquece no bico de Bunsen qualquer elemento químico, a cor emitida corresponde ao próprio elemento, e não à chama. Trabalhando em seu laboratório, os dois cientistas tiveram a feliz idéia de passar a luz emitida por diversos elementos químicos ao serem aquecidos pelo bico através de um prisma de vidro. E ficaram atônitos com o resultado: o espectro de cada elemento químico mostrava um conjunto de linhas de emissão brilhantes, mas sempre nos mesmos comprimentos de onda para aquele elemento – formando um padrão único e característico dele. Por exemplo, o neônio tinha linhas fortes de emissão no vermelho, o sódio no amarelo e o mercúrio no amarelo e no verde.

A figura demonstra o espectro de emissão do hidrogênio, tal como poderia ter sido visto por Kirchhoff e Bunsen em laboratório. Esse conjunto de linhas, nesses exatos comprimentos de onda, forma um padrão que funciona como uma verdadeira “impressão digital” do hidrogênio, onde quer que ele se encontre: no laboratório ou nas estrelas.

Mas as linhas obtidas no laboratório eram brilhantes, enquanto que as de Fraunhofer eram escuras. Para comparar as linhas de emissão com as de absorção, Kirchhoff passou a luz solar através de vapor de sódio. Ele queria confirmar se as duas fortes linhas de absorção D1 e D2 do espectro de Fraunhofer eram as mesmas duas linhas brilhantes que apareciam no espectro de emissão do sódio. Ele esperava que as linhas brilhantes preenchessem as linhas escuras do Sol, mas para a sua surpresa, ele notou que as duas linhas de absorção se tornavam mais escuras. Ele repetiria a experiência com linhas de cálcio, magnésio, cromo, cobalto, zinco, ferro, níquel e bário, identificando a presença desses elementos no Sol e compreendendo a natureza das linhas de absorção. Posteriormente, ele identificaria todas as linhas de absorção solar denominadas originalmente por Fraunhofer, de A até K. As experiências de Kirchhoff lhe permitiram também formular as suas três leis empíricas da espectroscopia. Cada uma dessas leis explica um dos tipos de espectros:

  1. Espectros contínuos: São produzidos por corpos densos e opacos quentes (sólidos, líquidos ou gasosos). O espectro contínuo ou térmico não apresenta linhas. O filamento de uma lâmpada comum de tungstênio, uma corrente de lava derretida ou as fotosferas (“superfícies”) das estrelas apresentam espectros contínuos.
  2. Espectros de absorção: Ocorrem quando um espectro contínuo, produzido por uma fonte a alta temperatura, atravessa um gás a temperatura mais baixa que aquela fonte. Formam-se então linhas de absorção correspondentes aos elementos químicos que estiverem presentes no gás frio.  As atmosferas das estrelas são o exemplo mais típico.
  3. Espectros de emissão: São produzidos por gases pouco densos (transparentes), a altas temperaturas. Aparecerão então linhas de emissão correspondentes aos elementos químicos de que o gás é constituído. Ao contrário das linhas de absorção, o espectro de emissão não requer necessariamente que haja uma fonte contínua atrás do gás. Há casos, no entanto, em que o gás quente envolve uma fonte contínua (por exemplo, a fotosfera de uma estrela), cuja temperatura é mais baixa que o gás. Nessa situação, formam-se linhas de emissão brilhantes sobrepostas ao contínuo da fotosfera.

Estava claro para Kirchhoff e Bunsen o imenso potencial de suas descobertas: contrariando o que havia sido imaginado por Auguste Comte, era perfeitamente possível determinar a composição química das estrelas. Analisando os seus espectros, bastaria identificar as linhas correspondentes aos elementos químicos cujos comprimentos de onda haviam sido previamente medidos em laboratório: a presença das linhas (as “impressões digitais”) de algum deles no espectro indicaria que aquele elemento existia na estrela. A ligação entre a física na Terra e a luz das estrelas tinha sido estabelecida, e o caminho para a astrofísica estava finalmente aberto.

Daí para diante, as descobertas se sucederam vertiginosamente: Além dos próprios Kirchhoff e Bunsen, vários astrônomos passaram a trabalhar com a recém-nascida ferramenta da análise espectral. Entre eles estavam Giambattista Donati na Itália, Lewis Morris Rutherfurd nos USA e, em especial, Sir William Huggins (1824-1910) na Inglaterra e o padre jesuíta Angelo Secchi (1818-1878) no observatório do Vaticano.

William Huggins – bem como sua esposa, Lady Margaret Lindsay Huggins – foi um pioneiro da espectroscopia. Assim como Kirchhoff e Bunsen, os Huggins logo notaram que os espectros estelares não eram todos iguais; só alguns se pareciam com o do Sol. Já em 1862, eles haviam identificado ferro, magnésio, sódio, cálcio e bismuto nas estrelas Aldebaran e Betelgeuse; em 1864, obtiveram o primeiro espectro de uma nebulosa planetária (NGC 6543) e, depois de observar mais 70 até 1868, concluíram que as nebulosas apresentavam linhas brilhantes de emissão: uma do hidrogênio e outras duas que só seriam identificados em 1927 como linhas proibidas do O II, O III, e N II. Eles estabeleceram a primeira distinção entre nebulosas e galáxias, ao mostrar que algumas nebulosas, como a Nebulosa de Órion, têm espectros de emissão pura característicos de gás, enquanto outras, como a Galáxia de Andrômeda, têm as características espectrais de estrelas. Em 1868, observando Sirius, o casal Huggins notou que as linhas espectrais apresentavam desvio para o vermelho, e propôs que o desvio poderia ser usado para medir a velocidade radial da estrela. Finalmente, em 1899, os dois publicariam “An Atlas of Representative Stellar Spectra from lambda 4870 to lambda 3300, together with a discussion of the evolution order of the stars, and the interpretation of their spectra”, que resumia o trabalho dos dois por quatro décadas.

No observatório do Vaticano, o padre Angelo Secchi, entre 1863 e 1868, dedica-se a um vastíssimo trabalho de identificação das linhas espectrais de estrelas, classificando-as posteriormente em quatro tipos básicos e alguns intermediários.  Secchi adotou, como critério primordial para sua classificação, a intensidade das linhas de hidrogênio (que hoje chamamos de série de Balmer) no espectro observado. Assim, as estrelas que apresentavam as linhas de Balmer mais fortes eram classificadas com Tipo I; a classe  seguinte, como Tipo II, e assim por diante. O padre italiano chegou, sozinho, a classificar cerca de quatro mil estrelas por esse processo. O trabalho do padre Secchi foi a base para a classificação espectral moderna, sendo ampliado nos anos seguintes por Hermann Vogel e Julius Scheiner em Potsdam, e em especial por Edward Pickering e seu grupo de Harvard, conforme veremos dentro em pouco.

Nos primeiros anos da espectroscopia, a fotografia dos espectros das estrelas (com exceção do Sol) ainda não era possível, e por isso os espectros eram obtidos visualmente. Foi somente em 1872 que Henry Draper (1837-1882) obteve a primeira foto de um espectro estelar, da estrela Vega. Draper era um médico conceituado e próspero, e também um astrônomo amador e astrofotógrafo dedicado, tendo ainda construído seu próprio espectroscópio. Após sua morte, sua viúva, Mary Anne Palmer Draper, criou o Henry Draper Memorial Fund, que doaria generosos recursos ao Harvard College Observatory para a preparação de um grande catálogo de estrelas que incluísse a sua classificação espectral.

Com os recursos recebidos em 1886 do Draper Fund, o então diretor do Observatório, Edward Pickering, conseguiu formar uma fabulosa equipe de jovens astrônomas para executarem o gigantesco trabalho de analisar, espectro por espectro, fotografia por fotografia, as linhas espectrais de cada estrela e classificá-las – inicialmente partindo dos critérios de Secchi. Entre essas talentosas jovens (que passaram a ser chamadas de “women-computers”) estavam Williamina Fleming, Antonia Maury, Henrietta Leavitt e Annie Jump Cannon.

O primeiro resultado do trabalho das jovens foi publicado em 1890, e se chamou Draper Catalogue of Stellar Spectra: ele continha 10.351 estrelas e havia sido preparado principalmente por Williamina Fleming. O esquema de classificação nele utilizado (também desenvolvido por Fleming) subdividia as quatro classes de Secchi em tipos mais específicos, que eram nomeados de A até N, além das letras O (para estrelas Wolf-Rayet), P (para nebulosas planetárias) e Q (outros objetos).

O trabalho para o catálogo mais extenso (Henry Draper Catalogue, ou catálogo HD) se iniciou em 1911. Com a morte de Fleming naquele ano, a liderança do grupo passou para Annie Cannon. O catálogo foi publicado em nove volumes nos Annals of Harvard College Observatory entre os anos de 1918 e 1924, e continha posições, magnitudes e classificação espectral para 225.300 estrelas.  Finalmente, após a morte de Pickering em 1919, Cannon ainda publicaria, em seis volumes entre 1925 e 1936, uma extensão do catálogo HD, com 46.850 estrelas adicionais. Os catálogos produzidos em Harvard são usados até os dias de hoje.

No decurso dos trabalhos do grupo de Harvard, ficou evidenciada a necessidade de refinar os critérios de classificação de Secchi e Fleming, para refletir uma sequência mais lógica dos diversos tipos espectrais. Assim, embora se mantivessem as letras A, B, etc, para a intensidade das linhas de hidrogênio, foram introduzidos novos tipos, baseados nas intensidades das linhas de outros elementos químicos. O resultado foi uma sequência essencialmente baseada nas temperaturas efetivas das estrelas, que conservamos até os dias de hoje.

Os tipos básicos foram nomeados, numa ordem de temperaturas decrescentes, por letras maiúsculas, na seguinte sequência:

O, B, A, F, G, K, M

Rapidamente, os estudantes de Harvard arranjaram uma fórmula mnemônica para memorizar a ordem dessa sequência: a frase Oh, Be A Fine Girl; Kiss Me (“Oh, seja uma boa garota e me beije”). Desnecessário dizer que essa frase ficou famosa e é preservada até hoje: mesmo quando, muitos anos depois, foram descobertos novos tipos espectrais menos comuns (os tipos R, N, S, que entravam no fim da sequência), os criativos estudantes acrescentaram três novas palavras para completar a frase, que ficou: Oh, Be A Fine Girl; Kiss Me Right Now, Sweetheart, que poderíamos traduzir como “Oh, seja uma boa garota e me beije agora mesmo, querida”…

Cada um desses tipos principais, por sua vez, foi subdividido em dez subclasses: por exemplo, os subtipos A0, A1, A2,…….A9, de tal forma que o subgrupo A0 se seguia ao B9, e o subtipo F0 se seguia ao A9. O Sol, por exemplo, se inclui neste esquema como uma estrela do tipo G2.

As características típicas mais importantes dos tipos espectrais básicos da sequencia principal, pela classificação de Harvard, podem ser vistas na tabela a seguir:

O sistema de Harvard recebeu um refinamento nas décadas de 1940 e 1950, introduzido pelos astrônomos norte-americanos William Morgan e Phillip Keenan. Morgan e Keenan perceberam que havia necessidade de levar em consideração o fato de que existem estrelas gigantes e supergigantes, que não se encaixam nos critérios da sequência principal da classificação de Harvard. Há estrelas vermelhas gigantes, por exemplo, que possuem temperaturas efetivas semelhantes às da classe M da sequência principal, porém seus diâmetros podem ser da ordem de dezenas ou centenas de vezes o diâmetro solar. É claro que, nessas condições, pela lei de Stefan-Boltzmann, a sua luminosidade será muito maior do que as da sequência principal.

Morgan e Keenan estabeleceram uma classificação baseada na luminosidade das estrelas, que não elimina, mas sim complementa o sistema de Harvard. Hoje denominado sistema MK, ele adiciona um numeral romano no fim do tipo espectral de Harvard para indicar a sua classe de luminosidade. Estas classes são nomeadas como se segue:

Nosso Sol, por exemplo, seria indicado como uma estrela G2V na classificação MK. Esta é a forma corrente de classificação espectral.

Mas o espectro não indica somente a composição química das estrelas: ele nos dá também informações sobre, por exemplo, a temperatura e o movimento estelar. Um espectro contínuo nada mais é que a distribuição da energia irradiada em todos os comprimentos de onda. Por outro lado, alguns fatos experimentais já eram bem conhecidos em fins do século XIX: sabia-se que tanto a intensidade de energia emitida por um corpo denso, como o comprimento de onda correspondente à intensidade máxima da radiação, dependem, ambos, da temperatura do corpo. Quanto mais alta for esta, maior será a energia total emitida e menor será o comprimento de onda em que a intensidade é máxima. Porém a Física teórica ainda não havia encontrado uma teoria geral que explicasse as propriedades do espectro contínuo.

Então, em 1900, Max Planck, usando o seu conceito dos “quanta” de energia, conseguiu finalmente derivar uma equação (hoje chamada de Lei de Planck) que descrevia a relação entre intensidade de radiação, temperatura e comprimento de onda. Planck modelou sua teoria com base no conceito de corpo negro. Um corpo negro é um objeto capaz de absorver toda a radiação que incide sobre ele, sem refletir nada, e que, para estar em equilíbrio termodinâmico, deve também emitir energia nas mesmas taxas. Em outras palavras, um corpo negro é um absorsor perfeito – e ao mesmo tempo um emissor perfeito. Corpos negros são entes teóricos, idealizados: eles não existem na Natureza. Estrelas, é claro, não são corpos negros perfeitos. No entanto, o modelo desenvolvido por Planck com base neles se ajustou com aproximação bastante razoável para o caso real das estrelas.

Na figura acima são vistas as curvas teóricas calculadas segundo a lei de Planck para a radiação de três corpos negros a diferentes temperaturas (4000 K, 5000 K e 7000 K) e, para efeito de comparação, o espectro contínuo correspondente à temperatura da fotosfera do Sol (5840 K). Pela figura pode-se notar que, quanto maior for a temperatura considerada, maior é a energia emitida em todos os comprimentos de onda, e menor é o comprimento de onda correspondente ao pico de emissão.

A partir da Lei de Planck, pode-se também deduzir a lei de Wien, que, curiosamente, já havia sido descoberta experimentalmente pelo físico alemão Wilhelm Wien (1864-1928), antes mesmo de Planck enunciar sua teoria do corpo negro. A lei de Wien nos diz que, à medida que aumentamos a temperatura de um corpo, o máximo de sua emissão se desloca gradativamente para as regiões de menor comprimento de onda, e vice-versa. Matematicamente, ela pode ser escrita:

Uma segunda lei empírica da radiação térmica foi descoberta em 1884 pelos matemáticos austríacos Josef Stefan (1835-1893) e Ludwig Boltzmann (1844-1906).  Também ela pode ser deduzida analiticamente a partir da teoria do corpo negro. Stefan e Boltzmann descobriram que o fluxo de energia F, emitido por um corpo negro de temperatura  efetiva T , pode ser calculado por:

Ou seja, a energia emitida pelo corpo negro (ou uma estrela) varia de acordo com a quarta potência de sua temperatura. Se considerarmos uma estrela esférica de raio R e luminosidade L, podemos escrever a lei de Stefan-Boltzmann da forma como é mais usada para calcular os parâmetros estelares:

Uma outra aplicação importantíssima da espectroscopia é a possibilidade de detecção da velocidade radial (aproximação ou afastamento em relação à Terra)  de um corpo celeste. Isto pode ser feito através do desvio de suas linhas espectrais em relação aos padrões de comprimento de onda das mesmas linhas, medidas em laboratório. O processo é baseado no fenômeno conhecido como “efeito Doppler”, descoberto em 1842 por Christian Doppler (1803-1853). Doppler deduziu que, quando uma fonte luminosa se aproxima de nós, o comprimento de onda de sua luz nos parece menor, em relação ao que a radiação teria se a fonte estivesse em repouso. E, vice-versa, se a fonte se afasta de nós, o comprimento de onda de sua radiação nos parece maior que aquele de uma fonte em repouso.

Se imaginarmos o espectro dessa mesma fonte em movimento nas duas situações acima, poderemos perceber que:

  • Se a fonte se aproxima de nós, suas linhas espectrais se deslocarão para o lado de comprimentos de onda menores – ou seja, o lado da cor azul. Dizemos que a fonte sofre um desvio para o azul (blueshift)
  • Se a fonte se afasta de nós, suas linhas espectrais se deslocarão para o lado de comprimentos de onda maiores – ou seja, o lado da cor vermelha. Dizemos que a fonte sofre um desvio para o vermelho (redshift)

Assim, para medir a velocidade radial com que qualquer corpo celeste se move no céu (afastando-se ou aproximando-se de nós), em primeiro lugar, tomamos seu espectro. A seguir, medimos sobre ele a posição de algumas linhas bem definidas de qualquer dos elementos químicos presentes no astro, e as comparamos com os padrões de laboratório tabelados para os mesmos elementos.

Se chamarmos o comprimento de onda medido no espectro de l ; o comprimento de onda em repouso (medido em laboratório) de lo ;  a velocidade da fonte luminosa de v ; e a velocidade da luz de c, então o efeito Doppler pode ser expresso pela equação:

A equação acima não é válida para corpos que esteja a velocidades muito próximas da luz (velocidades relativísticas).

Foi com base neste conceito simples que a lei de Hubble e a expansão do Universo seriam descobertas, já na década de 1920. A lei de Hubble é uma lei empírica, enunciada com base nas observações espectroscópicas dos desvios para o vermelho (redshifts) em uma série de galáxias. Essas observações foram efetuadas por Vesto Slipher na década de 1910 e por Edwin Hubble e Milton Humason em Mount Wilson, durante os anos 1920. Hubble notou que, na sua maior parte, as galáxias apresentavam desvios para o vermelho (indicando que elas se afastavam de nós); através dos redshifts, mediu suas velocidades de recessão, e (com base na relação período-luminosidade das variáveis Cefeidas) conseguiu estimar as distâncias de algumas dezenas delas. A chamada “lei de Hubble” foi finalmente enunciada em 1929. Resumidamente, ela nos diz que a velocidade com que as galáxias se afastam (velocidade de recessão) é diretamente proporcional às suas distâncias:

…onde o parâmetro Ho é conhecido como “constante de Hubble”. A medida original de Hubble para Ho era de cerca de 550 (km/s)/Mpc; modernamente, valores entre 70 e 72 (km/s)/Mpc têm sido adotados. A “lei de Hubble” foi considerada na época a primeira evidência observacional da expansão do Universo[1].

Mas, pelo final do séc. XIX, ainda havia algo importante a ser descoberto. Mesmo já conhecendo bem os efeitos dos fenômenos relativos à luz – os espectros de emissão ou absorção – os cientistas ainda não entendiam as reais causas desses fenômenos: nem os mecanismos através dos quais a luz era produzida no nível atômico, e muito menos a relação entre os átomos e os espectros (em última análise, entre a matéria e a energia).

Sabia-se, evidentemente, sobre a existência dos átomos – que, aliás, já havia sido prevista há milênios pelos gregos antigos. Mas quase nada se sabia sobre sua estrutura. As primeiras tentativas para investigá-la, levadas a cabo em 1909 pelo físico inglês Ernest Rutherford (1871-1937), demonstraram que os átomos eram formados por um pequeno núcleo de carga elétrica positiva, circundado por uma nuvem de elétrons de carga elétrica negativa. Era evidente que esses elétrons não poderiam estar parados, pois neste caso a atração das cargas elétricas opostas faria com que eles se precipitassem no núcleo.  Rutherford então imaginou que eles giravam em torno do núcleo com órbitas circulares, segundo a mecânica clássica newtoniana. Mas mesmo isto não resolvia o problema: as cargas elétricas aceleradas emitem energia; em consequência, os elétrons iriam gradualmente perder sua energia cinética e espiralar na direção do núcleo. Todos os átomos se tornariam assim instáveis – o que obviamente não ocorre na Natureza.

A razão dessas incongruências seria logo descoberta, e não era decorrente de nenhum erro de cálculo de Rutherford: acontece que a mecânica clássica simplesmente não é válida em fenômenos de escala sub-microscópica como a estrutura atômica. Ela seria substituída pela mecânica quântica, cujas bases, como já vimos, haviam sido lançadas poucos anos antes por Max Planck e Albert Einstein. O responsável pela aplicação dos princípios da teoria quântica à estrutura do átomo, explicando finalmente a natureza da luz, foi o físico dinamarquês Niels Henrik Bohr (1885-1962).

Apenas quatro anos após Rutherford ter publicado seu problemático modelo, Bohr modificou-o, aplicando o conceito de quantização.  No modelo de Rutherford, os elétrons podiam orbitar o núcleo a quaisquer distâncias dele. Bohr propôs que – ao contrário – os elétrons só poderiam existir em determinados tamanhos de órbita, correspondentes a níveis de energia bem definidos. Enquanto um elétron permanecesse em um destes níveis (também chamados de níveis quânticos), ele não irradiaria nem absorveria energia. Apenas quando o elétron muda de órbita (de nível quântico), é que a energia seria absorvida ou irradiada sob a forma de fótons.

Consideremos o caso do átomo de hidrogênio – o elemento químico mais abundante na Natureza – para exemplificar o modelo de Bohr. O átomo de hidrogênio é o mais simples de todos: ele possui apenas um próton no núcleo, e um elétron girando em torno dele. Este elétron poderá estar posicionado em qualquer um dos níveis quânticos de energia da eletrosfera. Bohr calculou a energia de cada nível pela equação:

Onde h representa a constante de Planck, c é a velocidade da luz, e R é outra constante, chamada de constante de Rydberg, que diz respeito à relação entre a massa do  núcleo e a massa do elétron. O número n, por outro lado, é um número inteiro chamado número quântico principal e que indica a ordem dos níveis quânticos, valendo 1, 2, 3, ….. de acordo com cada nível.

O número 1 corresponde ao nível mais baixo de energia, que é o mais próximo do núcleo. Este nível é também chamado de nível fundamental.  Convenciona-se ajustar para ele uma escala em que sua energia seja zero. O nível 2 terá o patamar de energia imediatamente acima do nível 1, o nível 3 terá um patamar de energia imediatamente superior ao nível 2, e assim por diante, até chegarmos ao caso extremo no qual o elétron se separa do átomo (que se transforma num íon de carga positiva). Para o hidrogênio, a energia necessária para ionizar o átomo é de 13,6 eV (eletron-volts). Dessa forma, cada um dos níveis quânticos do átomo de hidrogênio terá uma energia intermediária entre zero (no nível fundamental) até 13,6 elétron-volts (energia de ionização). Dizemos que todos os estados entre esses dois extremos são estados de excitação. Na tabela abaixo, indicamos as energias de alguns desses níveis do átomo de hidrogênio:

Caso 1 – Emissão:

Se o elétron passar de um nível mais alto (mais energético) para um mais baixo (menos energético), perderá uma energia equivalente à diferença das energias dos dois níveis, emitindo essa energia sob a forma de um fóton. No seu espectro, portanto, aparecerá uma linha de emissão. A energia desse fóton será exatamente a diferença DE entre as energias dos dois níveis. O comprimento de onda da linha de emissão pode ser calculado pela equação de Planck-Einstein:

Consideremos um exemplo: se o elétron passar do nível 3 para o nível 2, a sua diferença de energias DE , pela tabela, será de (12,09 – 10,20) =  1,89 eletron-volt. Aplicando este valor na equação de Planck-Einstein, teremos:

Dessa forma, no espectro aparecerá uma linha brilhante de emissão exatamente no comprimento de onda de 6563 Angstroms, que corresponde à transição do nível 3 para o nível 2. Esta linha, por sinal, é chamada linha hidrogênio-alfa.

Caso 2 – Absorção:

Consideremos agora a situação oposta, ou seja, em que o elétron passa de um nível mais baixo (menos energético) para um mais alto (mais energético). Neste caso, ele precisará receber energia (sob a forma de um fóton) para poder realizar essa transição. Porém, não é qualquer fóton que servirá para isso: apenas os que possuírem uma energia exatamente equivalente à diferença de energias entre aqueles dois níveis. Todos os demais fótons passarão diretamente pelo átomo, atravessando-o sem qualquer interação. Mas já sabemos que todos os fótons que atingiram o átomo vieram de um espectro contínuo; apenas um deles foi absorvido pelo elétron para mudar de nível. Neste caso teremos uma linha de absorção, precisamente no comprimento de onda correspondente à energia do fóton absorvido. Todos os demais fótons que atravessaram o átomo como se ele não existisse continuarão formando o espectro contínuo nos demais comprimentos de onda. O cálculo do comprimento de onda da linha de absorção é feito exatamente da mesma forma que para o caso da emissão.

Numa situação real (por exemplo, na atmosfera de uma estrela), trilhões de átomos de um gás pouco denso (e geralmente mais frio que a fotosfera) são atravessados a cada segundo pela radiação térmica (espectro contínuo) que vem da própria fotosfera. Nem todos os seus elétrons irão, por exemplo, do nível 2 para o nível 3. Muitos o farão. Mas muitos outros irão do nível 2 diretamente para o nível 4, ou para o nível 5, e assim por diante. Outros sairão do nível 3 e irão para o nível 4, outros para os níveis 5, 6, etc. É exatamente por isso que não vemos uma só linha no espectro de cada elemento químico, mas sim um padrão de linhas, cada uma delas correspondendo a um tipo de transição do átomo daquele elemento.  Com o modelo de Bohr, fica claro porque esse padrão é sempre o mesmo para cada elemento químico. Ele corresponde precisamente às diferenças de energia dos níveis quânticos desse elemento, sendo os comprimentos de onda correspondentes calculados pela equação de Planck-Einstein.

Para o caso do hidrogênio, podemos reconhecer um padrão espectral que consiste de várias séries de linhas. Aquelas que correspondem a transições a partir do (ou chegando ao) nível fundamental, ou nível 1, fazem parte da série de Lyman, que cai no ultravioleta;  a maior parte delas tem comprimentos de onda muito curtos para passarem por nossa atmosfera.  Podemos detectá-las, entretanto, de satélites ou telescópios espaciais. As linhas desta série costumam ser indicadas como Lyman-alfa (1216 A), Lyman-beta (1026 A), Lyman-gama (973 A), etc. Já as transições a partir do (ou chegando ao) nível 2 caem no visível; podemos observá-las da Terra facilmente, e elas estão entre as mais usadas em espectroscopia. Elas constituem a série de Balmer, que inclui as linhas denominadas Hidrogênio-alfa (6563 A), Hidrogênio-beta (4861 A), Hidrogênio-gama (4340 A), Hidrogênio delta (4100 A). As transições do nível 3 caem no infravermelho e fazem parte da série de Paschen. As do nível 4 e 5 constituem as séries de Brackett e Pfund, também no infravermelho, e assim por diante. As séries subsequentes caem em regiões de comprimentos de onda maiores, e não possuem nomes especiais.

A figura abaixo mostra as séries principais do átomo de hidrogênio.

Um comentário final sobre a análise espectral: sua utilidade não se resume a revelar as velocidades radiais e a composição química qualitativa das estrelas. Pelas linhas do espectro, podemos também calcular a abundância de cada elemento químico; a temperatura da estrela; a sua rotação; a presença de companheiras eventuais; as suas luminosidades e eventuais variações; as suas densidades; e um grande número de outros parâmetros. E entre as principais aplicações da análise e da classificação espectral se inclui o diagrama Hertzprung-Russell (diagrama HR), fundamental para estudar a evolução das estrelas, e consequentemente das galáxias e do Universo como um todo.


[1] Posteriormente, os historiadores da ciência constataram que o astrônomo e abade belga Georges Lemaître já havia (dois anos antes de Hubble) descoberto a expansão do Universo com base nas observações de Vesto Slipher, publicando, entretanto, seus resultados em francês em uma pouco conhecida revista belga. Por uma questão de justiça, a União Astronômica Internacional recomendou em 2018 a mudança do nome da “Lei de Hubble” para “Lei de Hubble-Lemaître”.


Bibliografia:

Couper, H. and Henbest, N., The History of Astronomy, Firefly Books, 2009.

Gray, R. and Corbally, C.J., Stellar Spectral Classification, Princeton University Press, 2009.

Hubble, E., The Realm of the Nebulae, Dover Books, 1958.

Oliveira, Kepler S. e Saraiva, M.F., Astronomia e Astrofísica, Editora UFRGS, 2000.

Pannekoek, A. , A History of Astronomy, Dover Books, 1989

Becker, B. William and Margaret Huggins and the Origins of Astrophysics: pode ser lido em:

http://faculty.humanities.uci.edu/bjbecker/huggins/intro.html


Imagem destacada: Selo alemão comemorativo do 200 º aniversário do nascimento de Fraunhofer (Alemanha, 1987).

2 thoughts on “Uma pequena história da espectroscopia

  • 10/02/2022 em 22:25
    Permalink

    Como eu referencio seu artigo no meu TCC?

    Resposta
    • 14/02/2022 em 07:15
      Permalink

      Oi José, tudo bem?

      Ficamos felizes que o AC pôde contribuir com o seu TCC! Depois, se quiser, envie uma cópia para a gente ler 😉

      Segue forma correta para a referência:

      Napoleão, T.A., Uma pequena história da espectroscopia. Texto de divulgação científica elaborado para o grupo Alfa Crucis de pesquisas e estudos astronômicos (2018). Disponível em http://www.alfacrucis.org.

      Abraços,
      Renata

      Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *